ARQUEOLOGIA E CONSERVAÇÃO MURAL

Uma recente palestra em que falei sobre Arqueologia(s) do(s) Território(s), proporcionou uma ocasião para refletir acerca das múltiplas formas que o património (arqueológico) pode assumir. Um dos exemplos que evoquei foi esta intervenção de Vhils em Torres Vedras, fotografada numa visita realizada àquela cidade em 2020. O mural, realizado em 2009, faz parte duma série intitulada Scratching the surface. Como aliás admitida pelo próprio, a dimensão arqueólogica da obra de Vhils, toda ela bastante semelhante entre si, é estimulante para investigadores cuja principal forma de trabalho é a escavação arqueológica. Outros pontos de contacto, já bastante glosados no mundo da arqueologia, são as analogias que se podem estabelecer entre arte rupestre e graffiti.

Maio 2020

No entanto, não são essas as conexões que ora quero explorar. A comparação entre as fotos capturadas com uma década de intervalo não oferece grandes dúvidas: a figura representada já é pouco perceptível notando-se o desgaste avançado da representação mural original. Sendo que uma intervenção de recuperação do edifício onde o mural se encontra não terá afetado a zona onde a figura está representada, a verdade é que o motivo existente, por virtude do tempo decorrido, é consideravelmente diferente do original, tendo mesmo hoje que proceder-se a uma ‘arqueologia de visualização’ para conseguir discerni-lo.

Foto de 2009 retirada de https://www.vhils.com/

Ora, este caso leva-nos a considerar não só a natureza efémera destas intervenções, aliás assumida pelo próprio artista quando procede ao registo detalhado da sua obra para memória futura, mas sobretudo necessidade de iniciar em Portugal uma conversa sobre a conservação das intervenções artísticas designadas por graffiti. Para tal discussão, que já decorre noutros países, é preciso previamente separar o tagging do graffiti, o que nem sempre acontece no nosso país, erradamente confundindo-se assinaturas (tagging) individuais ou grupais com o graffiti. Embora o tagging possa ter preocupações estéticas na representação da assinatura, o graffiti, como também aqui exemplificado, deverá hodiernamente ser entendido como uma forma de expressão artística.

Se bem que o graffiti comteporâneo ainda não esteja completamente integrado no mainstream, é inegável que artistas como Banksy – anónimo presumivelmente inglês mordazmente crítico desse mesmo mainstream – têm visto a sua obra, muita vezes de carácter subversivo, transformada em bens transacionáveis e altamente procurados nos mercados de arte. Murais realizados por Banksy foram mesmo retirados pelos proprietários dos edifícios onde foram realizados e vendidos a galerias de arte. Por outro lado, as nossas cidades, em Portugal ou no estrangeiro, têm assistido a uma progressiva normalização e aceitação do graffiti (em Portugal além de Vhils poderá citar-se ainda Bordalo II) como expressão artística ‘legitíma’, criadora de marcos identitários em áreas específicas da paisagem, essencialmente, urbana. Empresas e instituições públicas são agora importantes clientes destas intervenções artísticas.

Tais desenvolvimentos em Portugal, sobretudo na última década, têm levado ao surgimento de inúmeras intervenções em diferentes paisagens urbanas das nossas cidades, particularmente tendo em conta a prolificidade de artistas como Vhils. Ora, muitas intervenções já denotam a passagem do tempo, como no caso específico aqui notado, sendo tal degradação um problema de conservação de arte pública. Considerando o carácter efémero destas intervenções acima referido, assumido por todos os seus artistas ou não, mas sobretudo a esperança de vida dos meios digitais de armazenamento, estamos preparados para deixar estes testemunhos artísticos desaparecerem totalmente? Como já notei anteriormente, motivos pré-históricos de arte rupestre, cuja execução é também, embora não somente, uma forma de marcar e balizar paisagens, ainda por cá permanecem, perenes no seu suporte pétreo…

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