Livros

Uma linha perfeitamente reta, sempre adiante, desde o criacionismo ao evolucionismo…

A propósito do livro The Dawn of Everything: A New History of Humanity, cuja leitura só agora tive oportunidade de terminar, lembrei-me do fantástico cartum de Dave Carpenter que já utilizei em várias circunstâncias e do qual, por isso mesmo, até adquiri licença para uso pessoal. Aplica-se a várias questões levantadas pelos autores, o antropólogo David Graeber e o arqueólogo David Wengrow, ao longo deste livro, nomeadamente àquela que dará o seu mote: a crença numa evolução linear, de feição teleológica, da história humana, desde sociedades mais equalitárias para outras mais estratificadas; o impacte da revolução Neolítica para o nascimento da ‘civilização’, traduzido no surgimento de complexidade nas organizações humanas, classes administrativas e monarcas de feição mais ou menos déspota; enfim, que os processos que levaram a que o mundo seja como é hoje só poderiam conduzir ao que hoje temos, incluindo o colonialismo europeu, as restrições de liberdades pessoais em troca da proteção conferida por um aparato de controlo ‘estatal’ mais ou menos benigno, e o surgimento do capitalismo que globalmente nos (des)governa.

Para combater tais asserções, evocam, com maior ou menor grau de razoabilidade, diferentes momentos na história de diversas geografias em que as coisas se terão passado de forma diversa do molde ‘ocidentalizante’. Tal é o caso dos grupos de nativos americanos da costa oeste da América do Norte, entre o que é hoje a California e o Canadá, que alternavam durante o ano entre uma organização social mais restritiva, hierarquizada e punitiva durante o inverno, juntando-se em grandes aglomerações e praticando rituais elaborados dirigidos por elites que incluíam chefes que comandavam uma ‘polícia’ que garantia a ‘ordem pública’; e o verão, quando as populações se dispersavam em bandos familiares, cobrindo vastos territórios e colhendo ou caçando diversos tipos de alimentos, numa organização social tendencialmente igualitária.

Outro exemplo dado é o de uma cidade no México pré-colonial, Teotihuacan. Aparentemente a certo ponto da sua história, os seus habitantes conscientemente recusaram seguir o caminho que vizinhos seus foram paralelamente trilhando, como sejam os Maias ou os Astecas, tendo estabelecido uma organização social de cariz igualitário, sem monarcas e com decisões tomadas no seio de assembleias gerais da população. Embora esteja ainda pouco claro como tudo isto funcionava, as evidências arqueológicas hoje disponíveis parecem apontar para um momento de corte em que terá sido decidido que não mais seriam governados por monarcas.

No entanto, aquilo que mais me cativou no livro, porque nunca assim tinha visto a questão, é a sugestão de que o século da Luzes, o Iluminismo ‘humanista’ europeu, foi uma reação às críticas que em diversas ocasiões indígenas norte-americanos fizeram às sociedades colonialistas europeias. De facto, vários nativos americanos que por volta do século XVII entraram em contacto com as sociedades europeias, quer na América do Norte, quer mesmo em visita à Europa, criticaram fortemente o modo de vida ocidental, nomeadamente na forma injusta como as mulheres eram tratadas, a injustiça do poder hereditário, ou do ditado por questões de fé, por possessão de terras ou de capitais, ou ainda a restrição das liberdades pessoais. Isto num contexto, como é notado, em que os nativos norte-americanos, apesar de não possuírem sistemas de escrita, estavam habituadas a manterem longa dialética em assembleia com vista a tomarem as decisões momentosas que afetavam a vida coletiva. Assim, a capacidade argumentativa era considerada uma das características distintivas dos chefes, uma vez que essa seria a única forma de convencer os pares a acatar determinada decisão, pois é várias vezes sublinhado no livro que estas eram sociedades permissivas em que os indivíduos apenas obedeciam se assim lhes aprouvesse, embora existissem algumas exceções nomeadamente quando em incursões contra os inimigos. De facto, havia vários grupos que tinham um chefe para tempos de paz e outro para liderar as surtidas guerreiras, sendo que os ‘regimes’ a obedecer variariam conforme as ocasiões.

Esta sugestão duma ‘origem’ indígena do Iluminismo motivou a crítica mais contundente ao livro, a de que era tradição autores europeus colocarem na boca de supostos interlocutores indígenas palavras de censura às sociedades europeias contemporâneas porque assim não as tinha de assumir, mas também porque o género “conhecer o selvagem” era imensamente popular no século XVI e XVII. Polémicas à parte, julgo este aporte muito importante já que, como nota Sven Ouzman:“One of the axioms of “contact” is that to understand the “Other,” you also have to reexamine and reproject your notion of self.” Assim, irrelevantemente da polémica notada, a noção de que os ‘outros’ nos moldaram pelo menos tanto quanto ‘nós’ os moldamos a eles afigura-se agora para mim como elementar… até porque a cismogênese é também vista por Graeber e Wengrow como um mecanismo importante na diferenciação das sociedades: nós somos Romanos porque não somos Bárbaros!

Newspaper rock, Utah, EUA: Uma grande superfície rupestre usada durante larga diacronia para assinalar factos ou momentos importantes. Esta diacronia ter-se-á iniciado antes de tempos coloniais, prolongando-se até momentos pós-coloniais em que, por exemplo, o cavalo é introduzido na região, bem como até ao século XX!… (ver figura seguinte)
No topo esquerdo do painel, figura uma inscrição assinalando a data (?/3/1902) em que o primeiro imigrante latino permanente terá chegado ao Utah. Por baixo figura inscrição feita por filho desse primeiro Gonzalez em 6/3/54. Como sabemos isto? Porque o neto publicou a história em 1984 (https://issuu.com/utah10/docs/uhq_volume52_1984_number1). Ou seja, veja-se como este imigrante usou a mídia já previamente estabelecida pelos nativos originais para deixar marca da sua história… bem como fazer história futura!

Enfim, The Dawn of Everything: A New History of Humanity é uma obra plena de questões ominosas: houve alguma vez um período da história humana em que se tivesse vivido de forma completamente igualitária? O aumento da complexidade social levou forçosamente ao sacrifício das liberdades individuais? Ou ainda, a democracia (realmente) participativa só é possível em pequenos grupos, mas não em estados nação?… Para os autores, a resposta a estas questões é simples: “We know, now, that we are in the presence of myths”

Este escriba, em artigo aqui publicado, relativamente ao sacrifício das liberdades individuais, embora em contexto algo diferente, havia já notado:…

“evocando uma crítica bem conhecida à vigente cultura de massas, considerada como um aparato que funciona de forma ditatorial mesmo que nenhum regime totalitário esteja em vigor (Horkheimer, Adorno, & Schmid, 2002, pp. 94–136), pode ser sugerido que a subversão e/ou a criatividade na arte (rupestre) são, desde muito cedo, ‘apenas’ ferramentas usadas na estruturação e implementação do contentor de auto encarceramento amplamente e tacitamente aceite chamado “Cultura”. Felizmente, o ‘negócio’ (trade-off) evolutivo envolvendo o ganho de vantagens competitivas que a cultura lega e a perda da liberdade (presumida) que implica a aceitação de um conjunto mais ou menos autocrático de regras aderidas e aplicadas fornece um sentimento de pertença. Mais importante, também compreende a promessa de escapadas curtas, mas gratificantes, em busca da verdade, beleza, “realidade” ou significado, conforme fornecido por experiências estéticas/extáticas potencialmente transcendentes. Por sua vez, essas experiências promovem cumulativamente o ganho de vantagens competitivas ao ajudar a manter a estabilidade emocional e os laços de solidariedade dentro dos grupos humanos (Bar-Tal, Halperin, & De Rivera, 2007; Cuypers et al., 2012; Dunbar, 1993). Isso aumenta o foco sustentado e a eficiência comunitária, fornecendo “armadilhas” artísticas envolventes que são aparentemente libertadoras e verdadeiras. De fato, dissensão e criatividade resultante podem ter permitido que os dois mecanismos aparentemente opostos de cooperação e competição trabalhassem juntos, promovendo o surgimento de vantagens evolutivas, como sejam a religião, a arte ou a capacidade de criar e contar narrativas (Boyd, 2009, pp. 113–125).”

Boas leituras!